
Série: Os miseráveis
Roteiro: André Davies
Direção: Tom Shankland
Produção: Chris Carey
Produtora: Estúdios da BBC e WGBH Boston
Baseado em: Livro “Os miseráveis” de Victor Hugo
Ano de lançamento: Dezembro de 2018
Tempo de duração: 8 episódios de 45 minutos cada (em média)
Classificação indicativa: 14 anos e acima
Onde assistir: Lionsgate+
Sinopse
A minissérie “Os miseráveis“, lançada em 2018, é uma adaptação do romance histórico de Victor Hugo, ambientada do início do século XIX. A trama acompanha a saga de Jean Valjean, um ex-condenado que vive sob a sombra de seu passado e é constantemente perseguido pelo implacável inspector de polícia Javert. Paralelamente, a série “Os miseráveis” explora as histórias de outros personagens, como Fantine, uma mãe que é forçada a atos desesperados para sustentar sua filha Cosette, e Marius, um jovem que se envolve nos levantes revolucionários de Paris.
Série “Os miseráveis”
Comprei sua alma para Deus. Usará disso tudo para ser um homem bom
Existem obras que marcam tanto, que mesmo se passando décadas do seu lançamento, suas histórias continuam retornando à atualidade, se fazendo presentes em diversos formatos, alcançando gerações diferentes e gerando infinitos debates sobre a sociedade e as misérias que ela cria, sobre leis e o sobre o que é justo, sobre a alma humana e todos os seus conflitos, sobre bondade, perdão, amor e redenção. É o caso de “Os miseráveis”, magnífica obra de Victor Hugo, adaptada para uma minissérie, produzida pela BBC em 2018, escrita por Andrew Davies e dirigida por Tom Shankland. Uma adaptação que busca ser fiel a profundidade do romance original.
A história de “Os miseráveis” começa em junho de 1815, após vinte anos de guerra, a França se vê derrotada, Napoleão exilado e um novo rei aguardando ser coroado. A velha ordem será restaurada e a revolução esquecida. Será mesmo?
No campo de batalha de Waterloo vemos um homem saqueando os corpos que jazem mortos no chão, até que encontra sob escombros, um ainda com vida, acreditando estar sendo salvo e não roubado, Coronel Pontmercy entrega a esse homem sua gratidão, homem esse, que se apresenta a ele como Sargento Thénardier.
Pontmercy, lutou pela França ao lado de Bonaparte, e ainda que seja visto como herói por muitos, não é dessa maneira que Gillenormand, seu sogro monarquista, o vê. Tendo Gillenormand sido contra o casamento de sua filha com Pontmercy desde o início, quando essa morre, ele se vê brigando com o sogro pelo direito de ver Marius, seu próprio filho. Sob a ameaça da criança ser deserdada, Pontmercy se afasta, e passa a ver o menino apenas de longe, quando a empregada o leva para a igreja aos domingos.
“Os miseráveis” mostra que Marius, sendo criado pelo avô, cresce tendo as mesmas visões políticas que ele, bem como o mesmo desprezo por seu pai. Um dia, quando ainda criança, chega uma carta que diz que seu pai está para morrer e que gostaria de vê-lo antes de partir. Marius vai visitá-lo e seu pai lhe deixa de herança seu título de Barão e um pedido, estendendo sua gratidão para com aquele que o salvou um dia, que se encontrar o Thénardier, que o ajude como puder.
No entanto, nada disso tem muito significado para Marius enquanto criança. Mas ao se tornar um adulto, frequentando uma igreja, acaba conhecendo um homem que sabia quem era seu pai, e é este quem lhe conta que tipo de homem foi Barão Pontmercy e pelo que e por quem ele lutou. Todas suas convicções são desfeitas diante de tal história, ele rompe os laços com o avô e a vida o leva a se aproximar de um grupo de jovens que anseia por brigar pela liberdade de seu povo. Mas quem será Marius? Pelo que ele anseia? Pelo que ele lutaria?
“Os miseráveis” nos apresenta então Jean Valjean, condenado a 19 anos de prisão por roubar um pão. 19 anos vivendo acorrentado, sendo desprezado e apanhando por qualquer que seja o motivo. Toda dor sofrida alimentava seu ódio por tudo e todos. Vigiado de perto pelo policial Javert, um homem que nasceu na prisão, filho de criminosos, mas que escolheu, ao invés de atacar, proteger a sociedade, aplicando sobre os outros a severidade da lei. Sob seu olhar rígido não há justificava e nem perdão para más ações. Será possível aplicar a lei sem perder a humanidade?
Jean é solto, mas segue vivendo sob a sombra do seu passado. Seu passaporte amarelo, que o marca como ex condenado, o impede de arrumar abrigo ou o que comer, o impede até mesmo de receber um valor justo sobre o trabalho exercido. Enquanto estava pelas ruas, “Os miseráveis” mostra que uma senhora questiona se ele já havia batido em uma porta em específico.
No caminho indicado, Jean encontra o Bispo Myriel, que lhe dá o que comer e onde dormir. Alguém que lhe dá bondade e compreensão. Alguém que não o julga e tão pouco condena. E mesmo diante de tais gentilezas, com o coração cheio de ódio e amargura, sem acreditar que o amor possa salvar um homem, Jean paga a hospitalidade roubando os talheres de prata da casa e fugindo.
“Os miseráveis” mostra que não demora até que Jean seja capturado por policiais e levado até o Bispo. Esse não só lhe acoberta o crime, dizendo que lhe deu os talheres de prata, mas que ele esqueceu de levar os castiçais, também de prata. Lhe dando o perdão e ao mesmo tempo a liberdade. Jean, que há muito já não tinha fé nenhuma, teve sua alma comprada para Deus e para o bem.
Carregado de ainda mais raiva, sem entender o porquê, Jean foge dali, acreditando não se importar com mais nada e nem ninguém, a ponto de roubar a moeda de um garotinho que cruzou seu caminho. Mas algo estava diferente, algo já estava se transformando dentro dele. No badalar do sino da igreja, retrocede, seus joelhos se dobram, seu corpo se curva e as lágrimas caem. Um ato de bondade seria capaz de salvar inteiramente uma alma perdida?
“Os miseráveis” também nos apresenta Fantine, uma garota tímida, inocente e sonhadora. Trabalhava como costureira em uma fábrica de vestidos. Um dia, em uma festa junto com as amigas, conheceu um rapaz chamado Felix, por quem se apaixonou e a quem se entregou. No entanto, o que para ela era amor verdadeiro, para ele era apenas prazer e diversão. Desse relacionamento nasceu Cosette e quando ela tinha apenas meses de vida, Felix deixou mãe e filha para trás.
Quatro anos se passam em “Os miseráveis” e Fantine decide ir embora para Montreuil-sur-Mer em busca de emprego. Andando com sua filha no colo, avista uma estalagem, onde vê uma mulher, esposa do Thénardier, brincando com suas filhas, Éponine e Azelma. Ao conversarem sobre a dificuldade de se manter um emprego quando se tem uma criança, uma proposta surge. Ela pede para que o casal fique com Cosette, até que possa se reestabelecer e então voltar para buscá-la, pagaria por todos os cuidados.
Sob a condição do pagamento, o casal Thénardier aceita a proposta e Fantine parte para Montreuil-sur-Mer. Chega na cidade bem quando o novo prefeito está sendo anunciado. E é aí que descobrimos que Jean vive sob nome e vida de Senhor Madeleine, prefeito e dono da fábrica de bijuterias da cidade, onde Fantine consegue um emprego ao dizer que está sozinha no mundo.
“Os miseráveis” nos mostra que não sabendo ler, Fantine pagava um escriba para mandar cartas ao casal Thénardier, buscando informações sobre sua filha e lhes enviando o pagamento por seus cuidados. Mas a realidade era que a pequena Cosette não recebia cuidado algum, quem dirá amor. O casal fazia dela sua empregada, a menina sofrendo constantemente agressões físicas e verbais e gastavam todo o dinheiro enviado com eles mesmos.
A supervisora da fábrica não gostando de Fantine, decide segui-la, descobrindo não apenas sobre as cartas, mas a quem eram endereçadas. Indo até o endereço encontrado, ela conhece o casal Thénardier e a criança deixada para trás. O casal conta que Fantine é uma prostituta e que a menina foi concebida em pecado, convencendo-a de que Fantine é quem tira proveito da bondade deles.
Ao voltar para cidade, a supervisora delata ao Senhor Madeleine que Fantine é uma prostituta mentirosa que abandona crianças. Sem lhe dar muito espaço ou tempo para se explicar, ele acaba por demiti-la. Fantine se vê em desespero, não querendo partilhar sua desgraça com sua pequena, manda o pouco que consegue de dinheiro para ela, ficando com quase nada para si.
Com o tempo, o casal Thénardier passam a pedir mais e mais dinheiro, inventando até mesmo doenças para a criança, o que leva Fantine além do desespero. E em seu anseio de manter os cuidados e a saúde de Cosette, ela passa a degradar-se, fisicamente e emocionalmente, cada vez mais. Permitindo os mais diversos tipos de violência ao seu corpo, enquanto se quebrava pouco a pouco por dentro. Fantine passa a viver algumas das mais cruéis misérias.
“Os miseráveis” nos conta que o Senhor Madeleine ainda mantinha os castiçais de prata e buscava ajudar todos a sua volta, sendo muito querido pelo povo. Restaurou a prosperidade da cidade, dando emprego a quem quisesse trabalhar. E por um acaso, Javert é designado para trabalhar na mesma cidade, junto com o prefeito, tendo por sua missão de vida perseguir infrações óbvias e ocultas, homens que se aproveitam dos frutos de sua maldade, que enganam os demais e se escondem atrás de uma boa história.
Em um primeiro momento, Javert sequer desconfia de Senhor Madeleine, mas ao presenciar uma ação dele para salvar outro homem, usando de sua força, uma força que não é comum a qualquer um, passa a suspeitar, pois já havia visto um prisioneiro, por quem procura, fazer o mesmo e com o mesmo tipo de força. Javert faz uma denúncia, mas é avisado que o tal Jean Valjean está sob custódia da polícia, pois havia sido pego roubando novamente.
Em um entrelace do destino, “Os miseráveis” mostra as vidas de Fantine, Senhor Madeleine e Javert se cruzando, e suas ações, a partir daí, transformando completamente os rumos de suas histórias e por consequência, mudando os rumos de muitos outros personagens também.
Fantine, vivendo nas ruas, é atacada por um homem, a quem, em um surto de raiva, ela ataca de volta. Javert aparece para defender o homem e então prendê-la. Senhor Madeleine presenciando a cena e reconhecendo Fantine, sente culpa diante do ódio que ela destila a ele, bem como diante de sua degradação. Usa do seu cargo para protegê-la, passando por cima das ordens de Javert, fazendo da sua missão pessoal, os cuidados de Fantine e o bem de sua filhinha.

Javert, observando os últimos atos de Senhor Madeleine, confessa ao prefeito a sua desconfiança sobre ele ser Jean Valjean, bem como sua denúncia. Aplicando a si mesmo a severidade da lei e de seus julgamentos, acaba pedindo sua demissão, contando que sua última tarefa consistirá em depor contra o homem que foi preso como Jean Valjean, ainda que esse negue tudo.
Jean Valjen será capaz de deixar alguém ser condenado em seu lugar e permanecer sob o nome de Senhor Madeleine? Se acabar se entregando, o que acontecerá com Fantine? O que será da vida de Cosette ao lado do casal Thénardier? É possível um perdão para Jean? Quem mais teria compaixão por Fantine? Até onde a lei se sobressai a humanidade? Quais são as nuances da justiça? Um homem com más ações é simplesmente perverso ou existem circunstâncias para tais atos? Todo mundo tem capacidade para o bem e o mal? O que define o caminho tomado?
A minissérie “Os miseráveis” se dedica a conduzir o espectador pelas camadas sociais e emocionais que o romance original carrega, seja no que acontece nos becos das cidades, com a maior parte da sociedade fingindo que não vê o que ela própria produz, seja nas tensões políticas que moldam as escolhas de muitos, levando jovens idealistas rumo ao levante de 1832 em busca de liberdade, ou seja nas batalhas internas de seus protagonistas. Explorando conflitos sociais, psicológicos e espirituais com um olhar contemporâneo.
A minissérie “Os miseráveis” aborda com cuidado e sem pressa, ao longo de seus episódios, permitindo um aprofundamento maior do que em um filme, questões morais e sociais que, apesar de estar ali retratando a sociedade francesa do século XIX, são extremamente atuais. Mostra a miséria em muitas de suas facetas, de maneira crua e sem filtros, retratando como a estrutura social não dá margem para a ascensão e nem dignidade, retratando como as desigualdades e violências são capazes de desumanizar. Mostra o embate filosófico entre justiça e misericórdia, nos levando a questionar se existe uma maneira de atuar em conjunto com as duas visões sobre o mundo, a lei que pune e a compaixão que salva.
Fala sobre reconstrução interna, refletindo no externo, seu principal arco é a redenção, é o fio emocional que sustenta toda a obra. Como uma ação bondosa pode mexer com uma alma, a ponto de transformá-la completamente. E como o amor pode salvar, dar sentido e até dar mais vida a própria vida de alguém. Também nos fala sobre esperança, seja retratando aqueles que lutam por uma mudança externa, seja retratando aqueles espíritos livres que não quebram, seja lá quais forem suas misérias, aqueles que buscam ofertar ao próximo aquilo que nunca foi ofertado para eles.
A minissérie “Os miseráveis” conta com um bom elenco, Dominic West, como o quebrado, forte e intenso Jean Valjean. David Oyelowo como o inquietante e obsessivo Javert. Lily Collins (maravilhosa ❤️) entregando uma das versões mais humanas e dolorosas de Fantine. Ellie Bamber como Cosette, Josh O’Connor como Marius, Henry Lloyd-Hughes como Barão Pontmercy, David Bradley como Gillenormand, Derek Jacobi como Bispo Myriel, o casal Thénardier, vividos por Adeel Akhtar e Olivia Colman, Erin Kellyman como Éponine, Reece Yates como o pequeno Gavroche e Joseph Quinn como Enjolras.
Quanto a ser uma adaptação visual de uma obra literária, a minissérie “Os miseráveis” de maneira geral é bem semelhante ao livro de Victor Hugo, principalmente em seu início, do meio para o final algumas mudanças acontecem. Tem uma narrativa densa e uma carga emocional pesada, bem como uma fotografia que contribui muito com esse processo.
Boa parte dos atores conseguem transpor para as telas as emoções e conflitos que são descritos nos livros, seja em seus olhares ou silêncios, entre os diálogos ou em seus solos. No entanto, confesso aqui, que entre as mudanças feitas, normal em qualquer adaptação, algumas me incomodaram um pouco, nem tanto por cenas cortadas ou modificadas, mas sim pela mudança de personalidade de alguns personagens somada as atuações, bem como o acréscimo de algumas cenas sobre a vida de alguns personagens. Mas nada que diminua a qualidade de todo o enredo apresentado.
Entre a estética, o roteiro e a entrega de alguns personagens, a minissérie “Os miseráveis” da BBC se destaca como um estudo emocional, profundo e complexo sobre a humanidade. É social, político e existencial, muito semelhante ao que Victor Hugo queria mostrar em seu livro. A carga dramática intensa somada a um ritmo de narrativa mais contemplativa, pode agradar mais a uns do que a outros, mas é nesse formato que eles exploram mais detalhes da obra original, bem como dão mais voz a personagens secundários, ampliando para o visual a visão sociopolítica na qual o clássico literário é imerso.
A minissérie “Os miseráveis” em seu todo é uma experiência profunda, sensível e atemporal. Que nos convida a olhar para além da superfície, a enxergar as rachaduras existentes na lei e na sociedade, a enxergar o quanto somos capazes, enquanto sociedade, de quebrar os mais vulneráveis e depois puni-los por seus pecados, abandonando-os em desespero e em infinitas misérias. Nos mostra algo que Victor Hugo faz questão de nos lembrar em sua obra, a dignidade humana é um direito, não um privilégio. Ser santo pode ser uma exceção, mas ser justo deve ser a regra.
Dê uma chance, assista e depois venha aqui me contar o que achou. E caso não tenha lido o livro “Os miseráveis”, eu recomendo muito, é uma história daquelas que são capazes de transformar a alma de quem as lê.


